O fator fé

por John W. Kennedy e Tony Carnes

Mais uma vez, os evangélicos dos Estados Unidos vão influenciar de modo significativo as eleições nacionais neste ano. Os seguidores das igrejas protestantes representam um dos maiores grupos determinantes na sociedade americana – dependendo, claro, de como for definido o termo “evangélico”. Ninguém se esquece de que foi a chamada direita protestante que chancelou os dois mandatos do atual chefe da Casa Branca, o republicano George W.Bush. Nos EUA, o alto nível de influência dos crentes é resultante de vários fatores, incluindo seu firme comparecimento às urnas, percentualmente bem maior do que o total da população num país onde o voto é facultativo. Em tempos recentes, o engajamento civil tornou-se uma indicação de identidade evangélica, e votar é a expressão palpável desta postura. Por isso mesmo, tanto o democrata Barak Obama quanto o candidato do Partido Republicano, John McCain, esforçam-se para agradar a este sensível segmento do eleitorado americano. Para o eleitor evangélico, temas ligados a questões morais e comportamentais, como a legalização da união civil entre homossexuais e a liberação do aborto, por exemplo, costumam ter mais peso do que assuntos internacionais ou urgências da agenda interna, como a atual crise do sistema financeiro americano. É o fator fé, capaz de, mais uma vez, decidir os destinos da mais poderosa nação do mundo.
Em agosto, numa demonstração explícita de prestígio aos evangélicos, os dois candidatos compareceram a um fórum organizado pelo pastor e conferencista Rick Warren, dirigente da badalada Igreja Saddleback, em Lake Forest, Califórnia (ver entrevista). Warren, apontado como um dos homens mais influentes da América hoje, lido e ouvido por milhões de americanos, entrevistou McCain e Obama acerca de vários assuntos – principalmente, temas ligados a fé, religião e, claro, política e propostas de governo. Transmitido pela TV em horário de máxima audiência, a conversa galvanizou o país. Aparentemente à vontade, os dois rivais abriram o coração e até fizeram confidências. Pelo modelo proposto, não houve perguntas entre os dois – Warren conversou com cada um por cerca de uma hora, e a ordem foi decidida no cara-ou-coroa.
Obama, que falou primeiro, admitiu que, na juventude, bebeu e experimentou drogas. Não chegou a ser novidade – os fatos já foram narrados no livro que escreveu, Dreams of my Father (Sonhos de meu pai). Tentando capitalizar ao máximo o passado, o democrata fez questão de dizer que suas peripécias fizeram dele “uma pessoa melhor”. O candidato, que é senador pelo estado de Illinois, também se entreteve em explicar com detalhes como sua fé em Jesus o tinha ajudado a levar as cargas da vida, fortalecendo-o para o desafio de disputar a presidência de seu país como o primeiro negro a ter reais chances de chegar à Casa Branca. Já McCain confessou, com ar compungido, ter traído a primeira mulher, Carol, uma modelo da Filadélfia com a qual se casou pouco antes de embarcar rumo à guerra do Vietnã, nos anos 60. De volta aos EUA como herói em 1973, após permanecer cinco anos como prisioneiro no sudeste asiático, McCain encontrou a mulher com o rosto desfigurado por um acidente. Pouco tempo depois, numa festa militar, conheceu a milionária Cindy Hensley, com quem teve um caso e acabou se casando em 1980, após divorciar-se de Carol.
O debate com o pastor foi um episódio de importância crucial numa campanha apertadíssima. Até o fechamento desta edição, Obama estava à frente, favorecido pela crise financeira americana de setembro. Na percepção óbvia do eleitor, o colapso do sistema de crédito nacional é de responsabilidade do governo – e o atual mandatário do país, afinal, é do Partido Republicano. O episódio freou uma arrancada de McCain, que ganhara fôlego perante o eleitorado cristão com a indicação da governadora do Alasca, Sarah Pallin, como sua candidata a vice. Os dois candidatos participaram do fórum com a determinação de deixar clara sua fé cristã e seu apoio aos valores tradicionais, embora, dado o conservadorismo dos evangélicos americanos, John McCain tenha se saído melhor do que o oponente ao levantar bandeiras contra o aborto e o casamento entre gays.

Superando divisões – Mas o que os dois postulantes têm a dizer para conquistar os 25% do eleitorado que se confessam evangélicos praticantes? A campanha de Obama é fundamentada na retórica da esperança, de sonhos, e no bordão “mudança”, juntamente com calorosas palavras sobre Deus e o país. Como senador jovem do Illinois, ele tem sido apoiado, por anos, pela base do Partido Democrata, incluindo os eleitores da classe trabalhadora, sindicalistas, negros, feministas, grupos que lutam pelos direitos dos homossexuais e defensores da livre escolha da mulher pelo aborto. No entanto, pela primeira vez desde Jimmy Carter em 1976, um candidato presidencial democrata se mostra cortejando aos evangélicos e outros cristãos conservadores, de forma entusiástica e bem-sucedida.
Ao invés de criticar seu adversário republicano por servir à direita religiosa, Obama espera angariar votos evangélicos suficientes para colocá-lo no topo em novembro. O fato de ele falar a linguagem da fé de forma natural conspira a seu favor. Em entrevista recente à Christianity Today, Ron Sider, fundador do grupo Evangélicos pela Ação Social, disse que Obama “entende os evangélicos melhor do que qualquer democrata desde Carter”. Em junho, Sider estava entre os 40 cristãos convidados a uma reunião privada e confidencial, em Chicago, organizada pelo candidato. Outras personalidades do universo cristão americano estiveram presentes, como Franklin Graham, filho e herdeiro ministerial do respeitadíssimo pastor Billy Graham, T.D. Jakes, Eugene Rivers, o escritor Max Lucado e o editor da revista Christianity Today, David Neff.
Richard Cizik, vice-presidente para assuntos governamentais da Associação Nacional dos Evangélicos, disse que o convite de Obama representa a primeira vez em que um candidato presidencial democrata requisitou uma reunião com um membro da entidade. “Achei Obama desejoso de superar divisões”, disse, ao fim do encontro. “Ele está tentando solucionar problemas que a administração Bush não solucionou, como o seguro-saúde e a mudança climática”.
“Somente o fato de Obama estar organizando essas reuniões já é positivo”, diz John C. Green, um dos dirigentes do Fórum sobre Religião e Vida Pública. No seu entender, isso não garante que campanha democrata alcançará exatamente os resultados desejados entre os eleitores protestantes. Green lembra que nenhum democrata conseguiu mais do que um terço dos votos dos evangélicos brancos desde Carter. Em contrapartida, George W.Bush, em 2004, recebeu esmagadores 78 por cento dos votos do segmento. Todavia, Obama obteve sucesso em seu esforço de ganhar a atenção de evangélicos conservadores de um modo que outras estrelas do partido, como a senadora Hilary Clinton, que perdeu para ele a indicação democrata à Casa Branca este ano, além de John Kerry, Michael Dukakis e Walter Mondale, jamais conseguiram, durante suas respectivas disputas presidenciais. Ele conseguiu isso, em parte, fazendo o inesperado. Por exemplo, em julho, o candidato propôs a expansão do programa de Iniciativas Baseadas na Fé, do presidente Bush – ação que, desde o começo, enfrentou a oposição dos liberais devido a questões envolvendo a separação entre Igreja e Estado, tema crucial nos EUA.
Do mesmo modo, Obama foi feliz em conseguir ao menos o apoio de um dos maiores partidários do atual presidente, Kirbyjon Caldwell. Pastor da Igreja Metodista Unida de Houston, no Texas, a maior da denominação no país, o religioso deu sua bênção no início de ambos os mandatos de George W.Bush, e realizou a cerimônia de casamento de sua filha, Jenna, em maio. No último ano, Caldwell compareceu a um evento para angariar fundos para a campanha de Obama e disse que estava profundamente impressionado com o candidato. Outro importante líder afro-americano, o bispo Harry Jackson Jr., pastor sênior da Hope Christian Church, em Washington, D.C., afirma que o relativo silêncio de McCain com respeito às questões sociais tem motivado evangélicos olharem melhor para o democrata. “Existe uma tremenda apatia na direita religiosa”, aponta Jackson. “Os irmãos estão se sentindo traídos e esquecidos. Isso pode trabalhar em favor de Obama”

“Deus salve a América” – Pode ser, mas do lado de lá das urnas os partidários de McCain trabalham para tornar seu nome mais palatável ao eleitorado cristão, após um desgastado governo de matriz protestante que durou oito anos. E, se a Guerra no Iraque vem se tornando um trauma americano, nada melhor do que recorrer à memória de outro conflito desastroso para o país – Vietnã. Até recentemente, os detalhes sobre as convicções cristãs do candidato republicano estavam ocultas. A partir de meados deste ano, contudo, com a certeza de que McCain seria o homem na corrida ao poder, alguns de seus mais íntimos companheiros da Guerra do Vietnã começaram a levantar histórias que revelam uma espiritualidade estóica de McCain durante os cinco anos que passou como prisioneiro em Hanói. Num deles, o então tenente enfrentou militares vietnamitas que queriam acabar com os culto que McCain e seus companheiros faziam na prisão. “Enquanto era arrastado, ele cantou God bless America (Deus salve a América). Foi como cantar aos céus”, lembra o colega de prisão Orson Swindle.
Naquele ano, a celebração do Natal mostrou-se como outra decisiva experiência para McCain. Por semanas, os prisioneiros haviam requisitado uma Bíblia em inglês para poder comemorar corretamente a data. Por fim, os guardas cederam, permitindo que um prisioneiro tivesse acesso a uma Bíblia por trinta minutos. McCain foi o escolhido. Utilizando-se de pequenos pedaços da ponta de um lápis, ele copiou a história do nascimento de Jesus em um pequeno pedaço de papel. Assim, na noite de 25 de dezembro de 1971, os prisioneiros se reuniram para o culto com o Pai Nosso e cânticos de Natal, à medida que McCain recitava o texto. Ao final, todos cantaram, entre muitas lágrimas, Silent Night (Noite feliz).
Histórias assim costumam comover o eleitor comum, mas poucos dos líderes evangélicos consultados nesta reportagem consideram a si mesmos como íntimos do senador do Arizona – incluindo alguns de seus mais fervorosos amigos de fé. Muitos eleitores crentes permanecem indecisos, desmotivados e cautelosos em relação à candidatura republicana à presidência. Enquanto isso, McCain conta com o “fator medo”, também presente no jogo, vindo de três fontes – cada qual focada no democrata. O fundador da associação protestante Focus on the Family (Foco na Família), James Dobson, estigmatizou Obama como um extremista liberal. Em julho, a campanha republicana lançou o apocalíptico comercial de TV intitulado Aquele, contendo a sugestão de que o senador de Illinois seria o Anticristo. Da mesma forma, o novo bestseller de Jerome Corsi, The Obama Nation (A Nação de Obama), alega que o democrata possui extensas relações com o Islã, apesar de ele ter negado tais ligações diversas vezes.
Boataria por boataria, McCain também foi vítima de difamação pior nas primárias de 2000, quando concorria com o próprio Bush. Depois de esmagar o então rival nas primárias de New Hampshire, foi a vez de disputar a Carolina do Sul. Ali, a campanha de um anônimo difamou McCain, alegando que ele era homossexual, mentalmente deficiente devido ao período na prisão e que havia tido um filho negro fora do casamento – na verdade, o casal McCain adotara uma criança carente de Bangladesh. O candidato perdeu a primária da Carolina do Sul e seu apoio popular caiu de forma vertiginosa. Na época, ele acreditou que entidades ultraconservadoras como a Coalizão Cristã, do pastor Pat Robertson, e a Maioria Moral, de Jerry Falwell, ambas fechadas com George W.Bush, estavam por trás de tudo. McCain chegou a dizer à imprensa que a direita religiosa era uma “influência maléfica”. No entanto, o estrago já estava feito; no período de duas semanas, a campanha de McCain havia chegado ao fim.

Ambivalência – Não obstante, a reaproximação pública de McCain com os evangélicos aconteceu de uma vez só. No começo de 2007, o republicano, já de olho na Casa Branca, aproximou-se de Rick Warren, Franklin Graham, John Hagee e outros líderes evangélicos. Ele compareceu a consagrações na igreja e, em setembro, pela primeira vez, mencionou publicamente que estava freqüentando uma congregação afiliada à poderosa Convenção Batista do Sul. McCain começou moldar tranqüilamente sua retórica com uma linguagem apelativa à sociedade conservadora cristã. Chamou a América de “nação cristã” e sugeriu que um presidente crente em Jesus seria melhor que qualquer um com fé diferente. Além disso, reiterou sua convicção de que a vida humana começa na concepção – fala moldada para contrapor-se a Obama, que prefere tratar a questão do aborto como opção de cada um.
Em janeiro, McCain mostrou força ao vencer a primária de New Hampshire, um estado com poucos evangélicos de extrema-direita. Assim, um doce perdão veio com as grandes vitórias do republicano nas primárias da Carolina do Sul e da Flórida, levando à sua consagração e à desistência dos outros pré-candidatos do partido. Faltava, ainda, apoio público dos líderes evangélicos, mas pastores de alto coturno achavam-no extremamente evasivo sobre seus valores. Em junho, o conselheiro de McCain, Charlie Black, encontrou-se com o Grupo Arlington, de conservadores sociais, e anunciou uma plataforma simpática ao segmento, com críticas aos homossexuais, ao aborto e à política de imigração. Os evangélicos permaneceram ambivalentes. John Cook, um conservador cristão que possui cadeira no Comitê Executivo do Partido Republicano no Texas, admitiu “não saber o que fazer” com McCain.
Em 1º de julho, apavorados com a perspectiva de ter Obama como presidente, 60 líderes evangélicos se reuniram em Denver para escutar a toada da campanha de McCain. Eles anunciaram conjuntamente seu apoio, mas sem muito entusiasmo. “O senador não seria a primeira escolha de muitos evangélicos”, resigna-se Richard Land, da Convenção das Igrejas Batistas do Sul. Poderosos líderes protestantes, tal como o senador pela Flórida, David Rivera, e o presidente do Legislativo, Marco Rubio, estavam entusiasmados com Mike Huckabee – que desistiu durante as prévias – e mornos em relação a McCain; porém agora estão trabalhando forte por ele. “Eu estou temendo pelo que significaria para a América uma presidência de Barack Obama”, diz Rubio para quem quiser ouvir.
O que falta ao republicano nos relacionamentos pessoais com os evangélicos, os estrategistas esperam que ele compense com suas posições em questões morais. No final, o medo de um liberalismo ao estilo de Obama, em união a um Congresso democrata, pode trazer para McCain os evangélicos que não são captados pelas pesquisas. Ainda assim, além de suas fortes histórias, McCain ainda está para conseguir bom conceito entre os crentes, que também não aderiram em peso ao rival. A parada segue indefinida, mas há quem prefira olhar além. “Daqui a cem anos, o custo dos combustíveis hoje não será uma questão relevante”, lembra Rick Warren. “Mas a forma de liderar de um presidente continuará sendo fundamental.”

Tradução de José Fernando Cristófalo


Fonte:CristianismoHoje

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