Rafinha Bastos - Wanessa Camargo: Reflexão de Ed René Kivitz sobre o caso
Ed René Kivitz
Os loucos, os tolos e os deuses
Limite para liberdade soa como contra senso. Mas não é. A razão é
simples: dividimos o mundo com mais de 6 bilhões de pessoas. Quem leu
Freud sabe disso: “a civilização descreve a soma integral das
realizações e regulamentos que distinguem nossas vidas das de nossos
antepassados animais, e que servem a dois intuitos, a saber: o de
proteger os homens contra a natureza e o de ajustar os seus
relacionamentos mútuos”. Em outras palavras, para sobreviver num
universo hostil, cujas forças da natureza espalham sofrimento e
desolação, e em meio às gentes dominadas por paixões e com tendências à
violência, o ser humano precisa engolir o sapo de aceitar limites à sua
liberdade. Não é sem razão que muita gente vive com ânsias de vômito.
A questão, portanto, é distinguir quais são os tais limites à
liberdade que devem ser aceitos daqueles contra os quais devemos nos
rebelar. Há os que escolhem a própria consciência como paradigma único:
eu sou assim; faço o que quero; não admito negociar meus valores; não me
submeto a regras idiotas; não me curvo às autoridades; me recuso a
manter minha consciência nas fronteiras do socialmente aceitável e
politicamente correto. Muitos desses foram loucos, ou rebeldes sem
causa, idiotinhas vendendo a alma pelos seus 15 minutos de fama, alguns
tantos movidos pelos demônios dos infernos, e outros inescrupulosos
prepotentes, coisa de mau caratismo mesmo. Mas não há como negar que
muitos desses que pensaram e viveram fora da caixa foram profetas
construtores de novos paradigmas de civilização, personalidades à frente
de seu tempo que hoje reverenciamos, e um deles até hoje é considerado
Deus – Jesus de Nazaré. Esses últimos tinham em comum que quase nenhum
escolheu ser quem foi, quase todos lutaram com todas as forças tentando
negar o que eram e, com uma exceção, jamais imaginaram que no futuro
ocupariam a prateleira das personalidades inspirativas da humanidade.
Quem acredita que é, quase sempre não é.
A maioria dos mortais, entretanto, escolhe viver nos limites da média
dos valores consensados por suas respectivas sociedades. Os lúcidos
questionam os valores coletivos à luz de seus valores pessoais e aceitam
o fato inevitável de que o jogo comunitário exige três passos para
frente, dois passos para trás, e humildemente submetem suas convicções
particulares ao crivo coletivo, acreditando que no conflito e no debate
das ideias, a média dos valores consensados vai sendo qualificada no
esforço de todos pelo bem comum.
Os limites às liberdades individuais são definidos, portanto, pela
média dos valores consensados por uma sociedade. Cada sociedade tem seus
valores considerados sagrados ou intocáveis. Em 2005, o
jornal dinamarquês Jyllands-Posten publicou as 12 caricaturas
intituladas “Os rostos de Maomé” que, em janeiro de 2006, foram também
publicadas na revista norueguesa Magazinet. A polêmica foi
grande e os grupos islâmicos radicais protestaram com veemência o fato
de alguém ousar fazer humor com Allah e Maomé. O mesmo acontece com a
comunidade judaica que legitimamente protesta contra o desrespeito à
memória do Holocausto, e com os negros que corretamente se ofendem com
as piadas de cunho racista. Mas no Brasil sobram anedotas com o Cristo
crucificado. A diferença é clara: cada sociedade tem sua média
consensada de valores considerados sagrados, seus níveis de tolerância
para as diferentes maneiras como podem ou devem ser tratados, e sua
índole peculiar que permite maior e menor flexibilidade na manipulação
de seus afetos. Essa é a razão porque os brasileiros somos capazes de
chorar o luto dos nossos ídolos e contar piadas a respeito deles ao
mesmo tempo. Ayrton Senna recebeu tanto o melhor do nosso riso quanto de
nossas lágrimas.
Mas uma coisa não se pode negar. Quando alguém cruza a linha e
resvala, ainda que irresponsável e displicentemente, no que é
considerado sagrado e intocável por uma sociedade, qualquer que seja
ela, a resposta é imediata e contundente. O comentário de Rafinha Bastos
a respeito de Wanessa Camargo e seu ventre materno extrapolou os
limites aceitáveis. No Brasil, você pode contar piada sobre Jesus, José e
Maria, mas não pode fazer graça com pedofilia. Quem não respeita
limites impostos pelo consenso para a sua liberdade, cedo ou tarde acaba
crucificado. O tempo se encarrega de mostrar se o morto será esquecido
como louco, sepultado como tolo, ou adorado como Deus.
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